Há 41 anos, em Berlim, John Kennedy rematou com a frase "Ich bin ein Berliner" um famoso discurso em que afirmou que todos os homens livres, vivessem onde vivessem, eram cidadãos de Berlim, mostrando desse modo a sua solidariedade com a coragem do povo de Berlim Ocidental na sua luta pela liberdade contra a agressão soviética.
Na Lisboa desse tempo, o território dos bares nocturnos era o espaço ideal para quem gostava de discutir temas como a tal liberdade, que nessa longínqua época não fazia parte do cardápio dos políticos, embora não fosse tratada com tanto cinismo como hoje.
Resumindo esses espaços de tertúlia, tínhamos o American Bar ou a Taverna Imperial, para abrigar os ginjas, o Turf ou o Tauromáquico, tão impenetráveis como a actual defesa do Chelsea, o Bar Z, frequentado por seres exóticos, hoje conhecidos por gays, o Galo, o Cantinho dos Artistas, o Comodoro ou a Cave para as meninas bem das famílias mal, o da Discoteca da António Augusto Aguiar, para as meninas mal das famílias bem, o Lorde, o Ibéria ou o Belcanto, para as meninas de ambas as famílias quando envelheciam, o vizinho Mansarda que albergava existencialistas ou coisa parecida, e pouco mais.
Faltava o porto por achar, um bar moderno onde se pudesse reunir a fauna já citada, mas sem chocar as sensibilidades alfacinhas. Coube a Paulo Guilherme D'Eça Leal — um dos maiores artistas e boémios da época —, a honra, o engenho e a arte de criar esse desiderato pessoano.
No Snob não se encontram aqueles pretensos snobes de plástico, os famigerados pimbas, que ameaçam a liberdade das nossas instituições (nocturnas ou não) da Lisboa de agora (e tudo à volta). Não, lá os snobes são autênticos aristocratas das Artes, das Letras, da Imprensa, da Política, em suma, do Espectáculo. Não há Ferraris ou Lamborghinis à porta, nem as mulheres se apresentam como se fossem participar no desfile de encerramento de uma qualquer Moda Lisboa, porque aqui tudo é sugerido, nada é escancarado. O Snob tem o mistério da noite, tal como os seus snobes. Quando, após prolongada ausência, entramos neste espaço único lisboeta, por mais intimidade que exista entre nós e quem lá está, nunca somos saudados como se chegássemos de uma longa viagem ou de uma ignominiosa estada na Penitenciária. Recebemos apenas um piscar de olho, um breve aceno de mão ou um afável olá, próprio de quem esteve connosco na véspera. Depois, no Snob, cumpre-se uma regra de ouro dos bares, caída em desuso nestes tempos da tolerância: conhecidos os gostos dos frequentadores: não passam 30 segundos até que a bebida favorita esteja na mesa ou no balcão — lá é sabido que quem entra num bar é porque tem sede, excepção feita talvez a fiscais em serviço.
Quarenta anos depois da inauguração deste lendário espaço das noites de Lisboa, cantemos os parabéns à Dona Maria, ao Sr. Azevedo, à Menina Luísa e, claro, ao Sr. Albino, que no final deste excitante 2004 anda louco para conseguir achar o seu porto... E saudemos a sua resistência à agressão pimba.
Por tanto prezar a liberdade, digo também: eu sou um snobe!
João Braga,
músico(Texto escrito para a comemoração dos 40 anos do Snob/2004)