Na época estava na moda o Vat-69. Só depois é que o consumo do Cuty Sark adquiriu carta de alforria entre os mais apetrechados praticantes do desporto líquido. Bebia-se muito. O tempo não era favorável ao sonho, os melhores dos nossos amigos estavam no exílio ou nas masmorras do fascismo. E o álcool fazia desenvolver mecanismos de solidariedade. De quando em vez, um clandestino era preso; perguntávamo-nos se ele aguentaria, sussurrávamos, ciciávamos. Escrevíamos e falávamos baixinho, impelidos por esse sentimento do irremediável que lapidou para sempre os homens da minha geração e os da anterior. As coisas são o que são. Nada de ressentimento, nem de amargura. Vivemos na medida do possível. Ocasionalmente, relembramos episódios; e rimos do envolvimento trágico ou dramático que os condicionou. Muitos de nós fizeram o que era preciso fazer. Nada há de heróico ou de espantoso nisso; porém, não posso deixar de ornar certos homens e as suas circunstâncias de incomum grandeza. O Snob faz parte dessa história. Melhor: fizemos com que o Snob participasse da história de cada um de nós, em particular, e da história de todos, em geral. Dali, das conversas nas mesas, sob a luz opaca, nasceram jornais, livros, filmes, conspirações e júbilos. E algumas das mais sólidas amizades. No outro dia, regressei ao balcão de afectos, e bebi um pouco e devagar. O Snob estava cheio de outra gente, mas era a mesma gente transposta, reparei depois. Um pessoal que recebera o testemunho sem que ninguém lhe o desse; recebera-o de coração, para acrescentar à história a fatia de lenda que não admite nenhum equívoco. Foi há quarenta anos e foi hoje. E lá estavam o Eduardo Guerra Carneiro, o Afonso Praça e o Urbano Carrasco, cheios de palavras, mas também de silêncios, que iluminaram as proliferantes noites do Snob, repletas dos contínuos milagres da amizade.
Baptista-Bastos, escritor e jornalista
(Texto escrito para a comemoração dos 40 anos do Snob/2004)
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